sexta-feira, 26 de outubro de 2007

A VINGANÇA

A VINGANÇA

“A mim pertence a vingança” - Deuteronômio, 32, 35

Este caso aconteceu quando florescia em Curiapeba a febre do sisal. Casumba, velho vaqueiro da região, dono de uma fazendolinha ou, melhor dizendo, algumas tarefas de terras herdadas do pai, onde plantava anualmente a mandioca, o feijão, o aipim, a batata-doce, o jerimum, o cará e a melancia para o sustento da família, assim que os coronéis da região começaram a se interessar pelo sisal, cultivou um bom tampo de terras e nelas enterrou as mudinhas verde-cinzas da amarilidácea fibrosa.

Depois de alguns anos, quando o sisal já se achava maduro, em ponto de ser beneficiado, vendeu a folha preciosa a um certo usineiro da região, coronel João de Sousa Macaúbas, para que este colhesse a safra e lhe entregasse a terra o mais breve possível, a fim de ser devidamente capinada para o plantio de cereais, no tempo das águas que se aproximava.

O coronel Macaúbas há muito vinha procurando um pretexto para apossar-se daquelas terras que divisavam com as suas. Após o fechamento do negócio, demorou uma eternidade, sem ligar a mínima importância, nem para o sisal, muito menos para o trato firmado com o roceiro.

Casumba, notando a aproximação das chuvas, num dia de sábado, na feira de Curiapeba, rogou a terra ao coronel mais o cedo possível, a fim de beneficiá-la.

O coronel, olhando o vaqueiro com ar afetado, disse do alto da sua empáfia, a sacudir um chicote pendurado numa das mãos:

– Que conversa doida é essa, Casumba? Você está ficando maluco?...

Casumba, na sua ingenuidade roceira, pensando tratar-se de uma brincadeira de mau gosto por parte do ricaço, disse a sorrir:

– Ta bom, Coronel, se algum dia resolver vender a fazendolinha, não me esquecerei do senhor, não.

– Olha aqui, Casumba, acho bom você não se fazer de esquecido. Não gosto de brincadeira com essa gentinha da sua laia, ouviu?... Lembre-se de que lhe comprei as terras de porteira fechada, com tudo que lá está. Não foi assim o nosso negócio?... – Fez uma pausa, deu um passo à frente e disse concluindo o discurso:

– Para isso tenho escritura em meu poder!...

– Como escritura em seu poder, se não lhe passei nenhuma?... – Perguntou o caboclo surpreso:

– Então você quer me chamar de mentiroso?... – indagou o coronel de cara amarrada. Negócio é negócio ou você está pensando ter feito negócio com um qualquer? Você está negociando é com o coronel João de Sousa Macaúbas. Homem de uma só palavra.

– Que tenho eu com isso?... – Perguntou o vaqueiro saindo do sério. – Um homem é para outro!...

– Isso veremos depois – disse o fazendeiro com ironia.

– Se o senhor quer tomar o que é meu, pode tomar, mas não sair dizendo por aí afora que lhe vendi isso e aquilo, como anda a dizer.

– Olha, Casumba, você agora me ofendeu. Será que tenho precisão de uma pinóia de terras como as suas, que não dão nem facheiro, sem o seu consentimento?

– Não precisa e por que quer tomar?...

– Casumba, só me interessa no momento é o preto no branco e isso eu tenho pra lhe mostrar como sou dono absoluto de tudo aquilo.

– Admiro como você possa ter escritura, se não lhe passei nenhuma.

– Isso veremos depois... – disse o coronel, afastando-se.

– O senhor não passa de um gatuno!... – rugiu o vaqueiro tremendo de raiva.

– Basta, Casumba... – conversa comprida faz quem quer!...

– Fique sabendo que de cima do que é meu ninguém me tira, ouviu?... – disse o roceiro gago de raiva.

– Se você não desocupar a casa até o fim da semana, mando meus homens lhe botar de porta afora, para você aprender a fazer negócio com homem e deixar de ser teimoso, seu besta!...

Em seguida, tirou uma tragada do cigarro, cuspiu de banda e entrou na farmácia Hipócrates, de João Tolentino Clepaúva, ponto de palestra em companhia do padre Alfredo, Dr. Guilherme Monteiro Trindade (recém-chegado a Curiapeba), o vereador Walcírio Toneleiros Waluá, o dentista Athanázio Valovelho Clepaúva, Calcídio Sidônio Trombetas e outros coronéis do sisal.

Por essa altura a feira chegou ao fim. Casumba, meio desorientado, entrou na venda de Olegário Doca. Bebeu um alentado trago de catilóia, comprou um litro de querosene, colocou-o dentro do alforje, juntamente com outros trens que havia comprado. Montou no seu cavalo baio e seguiu o caminho de casa, pensando uma infinidade de coisas, já sob o efeito do álcool.

Chegando à casa, contou o caso à sua negra Fite e ao moleque Resmulungo, que na época tinha doze anos, um negralhão musculoso, de olhos mansos e dentes brilhantes. Fite, ao se inteirar do assunto, procurou confortar seu homem, dizendo que o Bom-Jesus-da-Lapa era por eles e nada de mal haveria de atingi-los. À noitinha, após a janta, foram à casa do compadre Trança, homem sério, respeitado em toda a região, a fim de se informarem a respeito do assunto.

Trança, após ouvir tudo, tirou uma tragada do cigarro, matutou um pouco, cuspiu de banda, coçou a barba e resolveu enviar Casumba à Jacobina, onde deveria se entender com o Dr. Délvio Francisco Pereira Castanho Manílio, advogado, a quem Trança havia dedicado seus préstimos como cabo eleitoral, quando o causídico disputou uma cadeira na Assembléia Legislativa.

Ao encontrar-se com o advogado, Casumba narrou-lhe tudo, tintim por tintim, conforme orientações do compadre: o jurista, por sua vez, tratou-o com distinção, chegou mesmo a prometer o possível e até o impossível a seu favor. No final da entrevista, após certificar-se de tudo quanto possuía o tabaréu, marcou a primeira audiência (afinal o juiz era seu amigo) para dali a um mês, na qual deveria comparecer também o coronel Macaúbas. Em seguida, acompanhou o roceiro com toda prestatividade até a porta do escritório, dizendo ao despedir-se:

– Pode ficar tranqüilo, seu Casumba, e voltar aqui no dia marcado. Sua causa, praticamente está ganha. Vou lutar a fim de mostrar a esse coronelzinho, como no Brasil ainda existem leis e homens que as façam cumprir. Urge acabarmos com essas injustiças do sertão, onde o dinheiro dita as leis.

O vaqueiro não entendeu quase nada daquele caudal de palavras bem torneadas, mas apoiou tudo com um sorriso amável. Montou seu cavalo, que havia ficado numa cocheira na entrada da cidade, e seguiu rumo de casa, contente consigo mesmo. Sua causa era justa. Teve mesmo ímpetos de conversar com o animal e contar-lhe todo o ocorrido. Chegando a casa, espalhou por toda a redondeza a historia, conforme ouvira do advogado. Contou a seu modo, é claro, assim como havia entendido e os leva-e-traz se encarregaram de colher os fatos, juntamente com o nome do advogado, e transmitirem ao coronel. Este, por sua vez, rapidamente, com seu dinheiro e influência, cassou a argúcia do jurista e, quem sabe, do juiz.

O coronel, às vésperas da audiência, sabendo da expectativa de ganho de causa por parte de Casumba, mandou um dos seus homens dizer ao matuto que desocupasse a casa até o dia seguinte, pois precisava dela para abrigar seus novos agregados. O matuto fez pouco caso das ordens e não arredou pé da vivenda, até que o coronel em pessoa foi, com seus jagunços, despejar a família, seus poucos trens, isso após um terrível bate-boca e promessa de vingança por parte de Casumba.

Resmulungo, conforme já dissemos, era nessa época um molecão taludo, inteligente, e presenciou toda a cena; daí por diante, passou a odiar o coronel com toda a força do seu coração. Chegou a prometer a si mesmo cobrar, e com juros, toda a injustiça cometida contra seu pai. Casumba, com o coração a palpitar de raiva, apanhou os trens jogados na rua pelos cabras do coronel e foi para a casa do compadre e, posteriormente, à Jacobina, a fim de entender-se com o advogado. O jurista, ao ver o tabaréu, foi logo dizendo nada mais poder fazer em seu favor, uma vez que o coronel alegava ter comprado a fazenda, exibindo escritura devidamente legalizada.

– Como isso, doutor, se nunca vendi nada a ele?... – inquiriu o matuto, mal contendo a indignação, agora também contra o advogado.

– É claro que vendeu!... – argumentou o jurista abrindo a gaveta de uma grande mesa, submetendo-lhe à apreciação de uma escritura devidamente legalizada.

O matuto, reconhecendo a causa perdida, aproveitou a oportunidade para desabafar. A timidez desapareceu num instante, como se por milagre. O advogado, desapontado, teve de ouvir contra sua vontade muitas verdades pronunciadas por um rude curiboca de palavras trôpegas, inseguras.

– Seu Casumba, por favor, me entenda, eu não tenho culpa, uma vez que o coronel prova que o senhor vendeu a fazenda, passando o documento a seu favor. O senhor compreende?...

– Não tem culpa?... – inquiriu Casumba, franzindo a testa, de olhos vidrados na cara do advogado. A culpa é toda sua. Aposto como você foi comprado por aquele ladrão da peste, causador de toda essa desgraceira. Deu dois passos em direção ao advogado e disse concluindo o pensamento:

– Não tem nada não. Deus é grande!...

Em seguida, cuspiu no assoalho, próximo aos pós do advogado, enfiou na cabeça o seu endurecido chapéu de couro de mateiro, que segurava em uma das mãos, dizendo numa golfada de indignação final, ao deixar a sala do jurista:

– O sertão está carecido de outros cabras valentes, justiceiros como Lampião, Marimbondo e Tonho, para acabar com toda essa laia de cabras safados!...

Saiu para a rua e procurou inutilmente por outros advogados, que lhes diziam da inutilidade da causa, por se tratar de um adversário poderoso, cheio de amigos influentes e dinheiro, que poderia contratar os melhores advogados da cidade, especialmente com o agravante de possuir uma escritura em seu favor.

O matuto, após ouvir várias lorotas iguais a estas, desiludido com os homens, com as leis e consigo mesmo, deu tudo por acabado, retornando à casa do compadre Trança. Tinha o espírito cheio de revolta, chegou mesmo a maquinar uma vingança contra o coronel; se não a pôs em prática, foi devido a muitos conselhos da esposa e do compadre, pessoas a quem muito estimava.

Após pensar, repensar, discutir o assunto com o compadre Trança e a esposa, resolveu deixar sua terra natal e ir aventurar a vida na cidade de Remanso, às margens do São Francisco, onde residia seu cunhado, Liberato, por sinal muito bem de vida.

A família fora bem recebida por Liberato, em Remanso. O cunhado, após lamentar a injustiça contra Casumba, providenciou-lhe casa às margens do grande rio de integração nacional, onde pudesse plantar e pescar à vontade.

O matuto, no passado um campeão no trabalho, agora se deixava levar pelo desânimo. Envelhecera precocemente. Tinha o andar trôpego. Tornou-se indiferente a tudo, passando a conversar sozinho, apregoando o fim do mundo e a volta de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo num carro de fogo, a fim de fazer justiça no sertão. Nessa época, nas horas de maior lucidez, queixava-se de fortes dores de cabeça, tonturas, falta de ar e contínuas palpitações no coração.

Num sábado à tarde, após relembrar com a mulher a pujança da feira de Curiapeba, que não saía dos seus pensamentos, sentiu uma pontada aguda no coração, curvou-se para frente e caiu morto aos pés da esposa.

Os familiares fizeram o enterro, lamentando a sua morte prematura e Resmulungo, já homem feito, resolveu vingar a morte do pai. Arquitetou alguns pacientes planos e, num domingo de Ramos, após depositar flores no túmulo do pai, despedira-se da mãe e do tio, com o pretexto de ir à Lapa do Bom Jesus, onde pretendia pagar uma promessa.

Ao desembarcar do trem em Itiúba, seguiu em direção à Curiapeba a pé, revendo com muita emoção as terras que conhecera na infância; reviu com lágrimas nos olhos a casa que fora do pai, agora ligeiramente modificada, o pé de são-joão coberto de flores amarelas, o riacho seco, enfim, tudo aquilo que lhe era muito grato e por certo nunca mais haveria de voltar.

Fazia o possível para evitar contato mais íntimo com os moradores da região. Chegou mesmo a não visitar o velho Trança, compadre do seu pai, temia ser reconhecido, não podendo assim cumprir o seu intento de forma anônima, como pretendia, embora estivesse totalmente diferente daquele molecote saído dali a alguns anos. Agora era um negralhão musculoso, simpático, possuidor de uma possante voz de baixo e uma abundante barba negra, que lhe davam uma aparência de príncipe africano.

Ao abandonar as terras que fora do pai, aproximou-se da fazenda Tuiuiú, onde pediu serviço ao fazendeiro, que de certa forma era seu conhecido e, não podendo atendê-lo, encaminhou-o à feira de Curiapeba, no dia seguinte, um sábado, onde poderia entrar em contato com alguns usineiros de sisal, que provavelmente estivessem precisando de mão-de-obra. Citou os nomes de Salustiano Montenegro Polissílabo Saraiva, Lúcio Butinove, Cirilo Trombetas Waluá, João Tolentino e os coronéis Dandinho e o indefectível João de Sousa Macaúbas, sobre quem acrescentou, à guisa de informação:

– Esse último é um velho desgraçado, ruim como carne de pescoço!...

Resmulungo se interessou mesmo assim pelo último e muito sutilmente procurou saber onde poderia encontrá-lo.

A par de tudo, escondeu-se no mato e esperou pacientemente pelo dia seguinte, um sábado, dia de feira, a fim de pôr em execução o seu diabólico plano.

Já era tardezinha, quando Resmulungo entrou na cidade, topando logo de cara com o velho coronel dando ordens aos seus agregados em frente à venda de Olegário Doca, onde estes faziam compras.

O negro reconheceu o velho coronel, o mesmo homenzinho de alguns anos atrás. O tempo parecia não ter afetado em nada seus traços de maldade e estupidez estampados na face. Tinha as mesmas expressões duras, arrogantes, cruéis, de homem mau. A mesma voz gritada, estridente, agora apenas um pouco mais rouca, devido ao excessivo uso do tabaco. Os mesmos olhinhos vivos, brilhantes, de cascavel enfezada. Enfim, era o mesmo coronelzinho prepotente, arrogante, do passado.

Logo a noite caiu, uma dessas noites cruelmente enluaradas do sertão. O coronel, após um lauto jantar, juntamente com a velha Maricota, sua esposa, e a nora Estelita, pôs a cadeira na calçada, segundo o hábito do lugar, para gozar em companhia das mulheres a fresca noturna. Resmulungo, que estava informado a respeito dos costumes do coronel, e ansiava por aquele momento oportuno. Caminhou em direção ao homem, com passos inseguros, imitando bêbado. Fingia-se bêbado propositalmente, a fim de não aguçar a desconfiança do velho e, assim, cumprir o seu intento.

O poderoso, entretido em difamar seus inimigos, viu um bêbado se aproximando, mas não deu a mínima importância; estava muito empolgado com a narrativa, não tendo tempo a perder com um vagabundo qualquer.

O negro, ao emparelhar-se com o velho coronel, nu da cintura para cima, recostado na espreguiçadeira, arrancou o punhal da bainha e num átimo o enterrou todo no rotundo abdome do homem, que, ao sentir o aço nas entranhas, deixou ecoar um horrível grito, tentando levantar-se inutilmente, enquanto o matuto, com rapidez de demônio, deu mais três terríveis estoca na barriga do coronel, que caíra na espreguiçadeira. O negro, em seguida, ao constatar a morte do infeliz, saiu a correr em direção a uma esquina, que dava para a caatinga próxima, previamente examinada.

As mulheres, após um breve atordoamento, como se despertassem de um sonho mau, deram o alarme. A velha Maricota estava pálida, trêmula, num verdadeiro estado de convulsão nervosa. Estelita chorava desesperadamente. Quando os vizinhos perceberam já era tarde e o homem acabara da morrer.

O delegado Febrônio Ausônio Manílio com seus subordinados do distrito não demoraram a chegar. Após algumas poucas e desfibradas informações, embrenharam-se caatinga adentro, em busca de um assassino misterioso, sobre quem quase nada sabiam.

A notícia, como praga, se espalhou por toda a redondeza e o povo, ao saber do ocorrido, inclusive os agregados e mesmo parentes do assassinado, diziam por uma só boca, como a se vingarem de injustiças passadas, cometidas pelo morto:

– Bem feito, aquele miserável já devia ter morrido há mais tempo!...

Outros mais afoitos diziam com sentido de dupla vingança:

– Agora esse desgraçado vai pagar no inferno tudo de ruim que aqui fez!...

E assim foi que se findou a lendária façanha do arbitrário coronel João de Sousa Macaúbas, para alegria de todos seus inimigos que, diga-se de passagem, não eram poucos.

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...abrindo a gaveta de uma grande mesa, submetendo-lhe à apreciação de uma escritura devidamente legalizada

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