sexta-feira, 26 de outubro de 2007

O CANGACEIRO

O CANGACEIRO

Nós que somos do sertão é que sentimos isso de verdade
Jorge Amado

Jagunços?...
Deus dê ao Brasil muitos desses homens, quando perigar a liberdade
ou se houver de medir com o inimigo.
Rui Barbosa

Tonho, após a seca periódica ter lambido seu roçado, resolveu deixar sua terra natal, Curiapeba, em busca de dias melhores, para as bandas das Lavras Diamantinas, onde diziam as línguas privilegiadas que se juntava a preciosa pedra com as mãos. Num sábado à tarde, comprou na feira carne seca, rapadura, farinha, e plantou os pés na estrada, rumo à terra da promissão.

O sol já tombava no poente, quando Tonho, coração pesado, deixou o seu sertão querido. Tinha um nó na garganta e um incômodo fardo a lhe apertar o peito. Triste, seguiu olhando a caatinga vermelha, desolada, quase morta, onde as cabras se penduravam nos galhos, a fim de comer uma ou outra folha morta, ainda não apanhada pelo vendaval da miséria. O sertão todo parecia um esqueleto em estado de decomposição. Só aqui ou acolá apareciam altas copas de juazeiros e baraúnas, que lembravam espantalhos verdes a desafiar a inclemência do sol.

Os jegues roíam a casca amargosa das catingueiras; as vacas morrinhentas disputavam, aos trambelhões, com risco das próprias vidas, os raros pés de faxeiros encontrados no meio da caatinga; enfim, todo o sertão, como uma paisagem lunar, clamava por Deus, água e alimento. Até os pássaros haviam fugido, com exceção dos urubus, alegres, festivos, girando em torno das carniças. As juritis emitiam um canto triste, longínquo, saudoso.

Tonho estava tão desesperado com a paisagem, que não percebeu quando as sombras da noite desceram sobre a caatinga. Após o escurecimento total, ainda viajou légua e meia até chegar à Vila do Araújo, onde passou a noite em casa de um certo Zé Latão. Este, a princípio, negou-lhe pousada, por ser o sertanejo um desconhecido com um saco às costas.

No dia seguinte, ao anoitecer, após furar muito sertão, chegou ao Ventura, logo arrumando uma colocação no Garimpo de Leonídio Aragão, para iniciar, no dia seguinte, a lavagem de cascalhos, em companhia de outros alugados. Entre eles, um logo se fez amigo de Tonho: chamava-se Cícero Romão, também conhecido por cearense Ciuçu, natural do Crato, devoto ferrenho do taumaturgo nordestino. Mais tarde, ficou a conhecer um tal de Marroás, sujeito moreno, avantajado de corpo, que não se apartava de uma peixeira e se blasonava de haver matado dois homens na sua terra e fugido da cadeia alguns pares de vezes.

Tonho, um rapagão de vinte anos, pacífico, ordeiro, procurou desviar-se daquele brutamontes; não por temê-lo, isto não, mas a fim de evitar aborrecimentos posteriores, pois se conhecia dono de um gênio cordato, humilde, quando bem tratado, porém o próprio diengue em pessoa, quando provocado.

A má reputação de Marroás corria todo o garimpo; chegavam mesmo a dizer que o subdelegado Ornélio Bramante Brumado, bem como o sargento Raimundo Nonato, mijavam-se de medo só de ouvir o nome do desordeiro.

Marroás tinha por costume acabar com os forrós e cabarés a tiros e pescoções, quando não inventava de dormir com a cabrocha mais bonita do prostíbulo. Após saciar os seus instintos bestiais, aplicava-lhe alentosas tundas e saía cantando de galo.

Certo sábado à tarde, após abandonar o serviço, Tonho foi dar umas voltas a fim de visitar as meninas do distrito pois se havia enrabichado por uma delas. Uma mulata de olhos enviesados, uma tentação em forma de mulher, dessas que tem bossa no andar e fogo de sete vulcões no xibiu. Haviam ficado embeiçados um pelo outro, pretendendo matar a saudade represada durante a semana.

Tonho ao chegar ao prostíbulo, topou-se com Marroás, que lhe perguntou à queima-roupa:

– Menino, o qu’istás fazendo aqui, não sabes que quem manda nesta bilosca sou eu, não?...

O sertanejo procurou desviar-se do arruaceiro sem responder-lhe a pergunta; acendeu um cigarro, começou a fumar, quando aproximou-se a cabrocha, dizendo com um sorriso regateiro:

– Você por aqui!... – Como tem passado?...

– Bem. – disse o rapaz.

– Já estava com saudade de você.

– Verdade? – perguntou Tonho a sorrir.

– Sim... – disse a moça, olhando nos olhos do rapaz.

Tonho puxou a rameira para si, perguntando enquanto a bolinava, beijando-lhe o rosto e a boca larga de lábios carnudos, sensuais:

– Como passou a semana?...

– Assim, assim... - fez a moça com um gesto de mão.

Sorriram os dois e a mulher mirando os olhos do rapaz, perguntou-lhe com cinismo:

– Como é, vamos fazer um beibe?

– Vamos... – disse Tonho bolinando a fêmea, que se contorcia numa simulação de prazer.

– Tinha saudades de mim?... – perguntou a rameira a sorrir.

– Muitas – disse Tonho a beijar-lhe a boca e os seios volumosos e redondos.

– Coração de homem é terra que ninguém vai...

Sorriram.

Nisso, uma noite quente, pegajenta, desceu sobre a vila, enchendo os becos de escuridade e mistério, quando um mestiço magro, de nariz chato, surgiu porta adentro, carregando um pandeiro na mão, acompanhado de um negro de meia idade, alto, magrelão, caolho, trazendo uma sanfoninha oito baixos a tiracolo. Após tomarem uns tragos de catilóia e muitas solicitações por parte dos presentes, começaram a cantar músicas de repertório sertanejo:

“Lá vem Sabino

mais Lampião

chapéu quebrado

e o fuzi na mão.”

Uma negra velha esmolambada, morrinhenta, que estava em pé ao lado do balcão, gritou numa voz esganiçada, pastosa, de cachaceira inveterada:

– Eita forró da peste!...

O sanfoneiro voltou ao balcão, bebeu o resto da cachaça e continuou:

“Sá dona entre pra dentro

só saia quando eu mandá

que levem a Força Volante

que é danada pra brigá!...”

A velha, num desengonçado passo que lhe sacudia a bunda flácida, após alguns volteios desconexos, parou, a revolver coisas do fundo da memória; encarou os presentes, dizendo:

– Ah minha mocidade, ah meus dezoito anos!...

Riram todos. Marroás, que havia saído minutos antes, entrou porta adentro. Vendo Tonho abraçado à rameira foi logo dizendo com certo rompante de valentão:

– Não me cheira bem essa bandalheira de vocês aqui não. Vê lá, seu menino, como se porta, ouviu?...

Em seguida, aproximou-se de Tonho, bateu-lhe no ombro, dizendo com ironia:

– É melhor você dar o fora daqui o mais rápido possível. O seu lugar é no cascalho do Aragão, aqui mando eu, ouviu?...

– O que você tem a ver com minha vida?... – perguntou Tonho – devo-lhe alguma coisa?...

Marroás, com um sorriso desdenhoso de valentão, nada respondeu; voltou ao balcão, pediu mais uma dose de catilóia, bebeu a metade do conteúdo, cuspiu de banda, limpou os beiços grossos com as costas da mão e, num átimo, virou-se para Tonho, atirando-lhe o restante da cachaça na cara. O rapaz ficou estático, imóvel, pois não esperava uma agressão de tamanho calibre. Após cair em si, passou a mão no rosto, tomou de uma tranca de porta que estava encostada à parede e partiu, como um louco, de encontro ao agressor.

A mulher, temendo a represália do arruaceiro, abraçou-se a Tonho, pedindo-lhe em nome de todos os santos, que o deixasse em paz. O sertanejo deu um safanão na rameira, rematando num ímpeto de ira:

– Me larga, me larga, condenada; vou desabusar esse sacana!...

Ao desembaraçar-se da rapariga, tropeçou nuns tamboretes, dando assim, vez à Marroás, que o agarrou com violência, aplicando-lhe vários murros na cara.

– Vai-te embora, cabra safado, urubu bosteiro! Nunca mais bote os pés aqui, ouviu?...

A mulher havia desaparecido. Tonho, moído de pancadas, pondo sangue pela boca, pelo nariz, deixou o prostíbulo, morto de vergonha. Tinha tanta raiva, que parecia ver luzes de vaga-lumes em todas as direções. No auge da angústia, quando já havia pensado em pôr termo à vida, a fim de dar cabo à tamanha humilhação, lembrou-se do cearense, seu colega de quarto. Sem mais delongas, correu à enxerga, tomou da mão-de-égua que estava na mala do amigo e voltou imediatamente em direção ao prostíbulo, onde Marroás continuava desafiando tudo e todos.

– O que tu ainda vem fazer aqui, excomungado? – perguntou o arruaceiro com maus pressentimentos.

Tonho, por sua vez, apalpou a pistola debaixo do paletó sujo de sangue coagulado e disse, aproximando-se de Marroás:

– Vim acertar minha conta contigo.

Marroás, que não tinha visto a arma, continuou com sua arrogância, a desafiar o sertanejo, quando este, cego de raiva, após ouvir um impropério contra sua progenitora, sacou a pistola, disparando o primeiro tiro, que em vez de atingir o valentão, cravou-se no bucho da negra velha.

Marroás, tomando de um pedaço de pau quebrado de uma cerca, investiu contra o rapaz, que desfechou um balaço certeiro no peito do desordeiro. Este, botando a mão sobre a fissura borbulhante de sangue, soltou um doloroso grito:

– Covarde, tu me mataste!...

O povo aglomerou-se e torno do morto e Tonho, aproveitando a oportunidade, capou o gato, deixando o palco da briga com dois mortos em cena.

O Sargento Raimundo Nonato, policial sádico, terror do povoado, ao saber do ocorrido, juntamente com seus esbirros, tomou as providências necessárias.

Tonho desapareceu sem deixar pistas, escondendo-se no sopé da serra, fugindo assim das primeiras batidas policiais.

Sargento Raimundo, após se informar da procedência do criminoso, interditou todas as estradas que saíam da vila, em especial, na direção de Curiapeba, onde por certo, dia mais, dia menos, o rapaz deveria passar. Os soldados, com ansiedade, aguardavam o momento, no qual o nordestino, acossado pela fome, desse as caras na estrada, a fim de ser cruelmente torturado, trancafiado num cubículo imundo de uma penitenciária, onde deveria pagar por todos os hediondos crimes do sertão.

Era meio dia mais ou menos, quando Tonho deixou a zona fértil da mata, começando a penetrar nas chapadas ralas, carrasquentas do sertão. Um sol inclemente, aos poucos, fazia sentir seus efeitos sobre a terra comburida. O sertanejo tinha sede, aproximou-se de uma casinha à beira da estrada e pediu água, quando foi cercado pela polícia, que apareceu tão de repente, como se tivesse brotado do chão. Tonho, que era um perfeito catingueiro, conhecedor profundo dos mistérios do sertão, evadiu-se instantaneamente, deixando os soldados abobalhados e ao mesmo tempo possessos com a vivacidade sua.

Sargento Raimundo, meio vencido, envergonhado, não se deu por isso, ordenando aos seus homens seguirem as pegadas quase invisíveis do foragido.

A caatinga estalejava seus ramos esturricados; uma ou outra juriti cantava ao longe; as rolinhas ariscas, velozes, arrrulhavam e os periquitos, vivazes, inquietos, revoavam em magotes, à procura de alimento. Uma acauã piou a chamar a seca para o sertão. Uma vaca morrinhenta arquejou a barriga descamada, olhou para céu de um azul profundo e, como a dirigir uma prece agoniada a “Deus-Nosso-Senhor-Jesus-Cristo”, berrou:

– Mooon!...

Outra rês responde ao longe num mugido triste, não menos atormentado, enchendo o sertão de angústia e pavor:

– Moooong! Moooong!... Humm!...

O Sargento Raimundo, que se mostrava um dos mais entusiastas na perseguição ao foragido, ao ver-se em contato direto com a agressividade do ambiente, vacilou, confessando a impressão de ter visto mil olhos vingativos a espreitarem por trás de cada pé de pau. A mesma paisagem que metia medo aos militares, infundia ânimo ao sertanejo, que, ao sentir-se no seu ambiente natural, recebia alento, quem sabe, vindo dos juazeiros, das baraúnas ou das juremeiras em volta.

Era dia alto, o nordeste soprava um bafo quente, poento, tingindo os galhos de vermelho. O homem que havia viajado toda noite, sentiu sede e pé-ante-pé, aproximou-se de uma cacimba, onde algumas mulheres desgrenhadas enchiam seus potes e quartinhas de uma água terrosa, extremamente salobra. O rapaz pediu água e, ao entabular uma rápida conversa com as tabaroas, fora informado de que o bando de Marimbondo havia dormido ali naquela noite. Mostraram-lhe os tições ainda fumegantes do fogo que os cabras acenderam. O matuto depressa se despediu segundo as pegadas catingueiras, com o firme propósito de fazer-se aceito no bando, custasse o que custasse.

Ao pôr do sol, deparou-se com a cabroeira acampada no alpendre de um casarão abandonado. Estavam todos alegres, bulhentos, a engolirem com voracidade pedaços enormes de carne-de-sol, farinha e rapadura.

Tonho, a princípio recebido com hostilidade, contou a sua história e rogou ao chefe que o aceitasse no bando. Marimbondo, mestiço baixote, corpulento, de dura gaforinha, olhos frios, enormes ventas de bueiro, deu uma risadinha comedida; olhou o rapaz de maneira misteriosa, a sondar-lhe a alma, dizendo num tom solene, respeitoso:

– De onde sois, meu filho?...

– De Curiapeba...

– Conheço – disse o chefe do bando – terra de mulé bonita t’ali, não?... – riram todos.

– Pois bem – continuou Marimbondo, demonstrando afeição pelo rapaz, logo de início – vida de cangaceiro não é tão fácil assim como tu está pensando – sabes?...

– Sei sim, Capitão – disse Tonho olhando no rosto do homem.

– Pois então depende de tu, se queres arriscar, eu aceito; estou mesmo carecendo de cabras decididos, só não te prometo nenhuma recompensa. É bom tu pensar em tudo isso antes de dar o primeiro passo. Se te convém, muito bom, se não, somos os mesmos amigos.

Tonho, encarando o rebelado, disse com voz firme:

– Quero ficar para o que der e vier.

– Cabra sarado!... É de homem assim que estou precisando – disse o cangaceiro.

Em seguida, comeu da carne com farinha, rapadura, e bebeu água. Dormiram uns, enquanto outros se revezavam na vigília até o romper da madrugada, quando arribaram em direção à fazenda Cajuí, do Coronel Dandinho Aderbal, onde pretendiam descansar, se abastecerem de munição, armas, cavalos e alimentos.

Os jagunços, montados em seus cavalos, cortavam veredas sertanejas, em direção ao ponto almejado. Já haviam viajado algumas léguas, os cavalos começavam a resfolegar, diminuindo gradativamente o passo, num visível sinal de enfado, forçando os cavaleiros a dirigirem-se às sombras acolhedoras de um juazeiro frondoso à beira do cainho.

Súbito, ao afrouxarem os arreios dos animais, um dos cabras avistou a pouca distância, debaixo de uma árvore, um soldado de farda amarela, arrastando-se igual à cobra, tentando distanciar-se dos cangaceiros. Nisto, olhando mais além, descobriram o temido Sargento Raimundo Nonato, com outros policiais, que não puderam fugir a tempo. Estavam imóveis, trêmulos, parafusados ao chão. Marimbondo, percebendo que seus cabras estavam melhor armados, sendo duas vezes mais numerosos, gritou em voz de comando:

– Cabroeira, os macacos estão em nossas mãos, vamos mostrar a eles como se faz justiça no sertão!...

Em seguida, cercaram os milicos e se prepararam para a chacina final, quando foram advertidos por Marimbondo, que gritou feito um possesso

– Quero o graduado vivo, tenho muitas contas a acertar com esse corno!...

Um soldado vermelho, grandalhão, de olhos azuis, ao ouvir estas palavras, abandonou a arma, abrindo unha em direção ao cerrado, sendo interditado por uma bala mortífera do fuzil de Frango D’água, que o imobilizou no meio da jornada.

Fora os que tiveram morte instantânea, ficaram o Sargento Raimundo Nonato e o soldado Macário, pegos abobalhados, sem oferecerem resistência, depois submetidos às mais terríveis torturas que se possa imaginar. O sol, inclinando-se em direção ao poente, presenciou naquele dia uma das mais macabras cenas cometidas debaixo do céu.

O Sargento Raimundo Nonato, após ser submetido a penosas torturas e interrogatórios, foi imobilizado, castrado e crucificado ao solo, com enormes chuchos de madeira cravados nas palmas da mão e dos pés, onde ficou esperando o momento de ser devorado, provavelmente ainda vivo, pelos urubus esfaimados, que começaram a rondar o sítio.

Um curiango cantou ao longe, um rodamoinho passou levantando poeira do chão; uma noite enorme, mormacenta começou a descer sobre o vale, juncado de cadáveres e cangaceiros.


A mesma paisagem que metia medo aos militares, infundia ânimo ao sertanejo, que ao sentir-se no seu ambiente natural, recebia alento, quem sabe, vindo dos juazeiros, das baraúnas ou das juremeiras em volta.

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