sábado, 27 de outubro de 2007

ESPINAFRINDA PEIXE D’ÁGUA VOLTA À CURIAPEBA, SUA TERRA NATAL, APÓS FORMAR-SE EM MESTRA-ESCOLA EM FACULDADES DO SUL


*
* *

ESPINAFRINDA PEIXE D’ÁGUA VOLTA
À CURIAPEBA, SUA TERRA NATAL,
APÓS FORMAR-SE EM MESTRA-ESCOLA
EM FACULDADES DO SUL

É o gado morrendo de fome e de sede
Judas Isgorogota

Após a seca periódica que constantemente assola o Nordeste brasileiro haver dizimado os roçados, secado os barreiros, matado o gado, os cabritos, os porcos, os cavalos e emagrecido assustadoramente os cães, gatos e homens. Chico Peixe d’Água passou a fazendinha Serrado nos cobres, isto é, vendeu-a para seu Lúcio Butinove a preço de banana, comprou malas, arrumou os trens e, num dia de sábado ensolarado, juntamente com a família numerosa, tomou um trem-de-ferro em Itiúba e se mandou para São Paulo. Espinafrinda Peixe d’Água, nessa, época, tinha apenas seis anos de idade e conservou para sempre um pedaço do seu chão de infância dentro de si. Sempre que os pais saudosos falavam de Curiapeba, a filha querida, na maioria das vezes, com lágrimas nos olhos, lembrava-se das galinhas, da cachorra Mimosa, dos pés de losna e cróton, que a mãe possuía numa gamela velha; do papagaio Tataco, dos bois mortos, das pessoas a se mudarem em direção a paragens melhores, onde as chuvas fossem mais abundantes. O certo é que a menina sempre dizia, fazendo coro ao restante dos familiares, que, um dia, quando Deus-Nosso-Senhor-Jesus-Cristo mandasse chuvas constantes para o sertão, voltariam definitivamente, todos, numa arribação, se não para a mesma fazendinha, hoje nas mãos de seu Lúcio Butinove, pelo menos para paragens por ali, de maneira que pudessem beber a água da terra natal e irem à feira de Curiapeba aos sábados.

A família a princípio fora morar num bairro pobre de São Paulo, onde logo todos passaram a trabalhar, primeiro os rapazes e o velho Chico, em uma construção. Com o passar do tempo, arrumaram coisa melhor em fábricas. Chico, foi contratado como cobrador de bonde da CMTC, onde se aposentou e, os três rapazes, um se tornou militar e os outros dois, Chico Filho e Zelão, conseguiram emprego no grande conglomerado Francisco Matarazzo. Na fabricação de cerâmica, em São Caetano do Sul. Quanto à menina, dedicou-se aos estudos. Excelente aluna, nunca repetiu um ano e, após concluir o colegial, no Grupo Saint-Hilaire, começou a trabalhar e a cursar a faculdade à noite e assim, com muito esforço e boa vontade, dentro de alguns anos estava formada e obtendo uma cadeira na mesma escola onde estudara. Espinafrinda era uma das professoras mais dedicadas da escola e não foi difícil conquistar o alto posto de diretora, posto esse que a enchia de orgulho. Pensava ela: “não cheguei aqui gratuitamente, afinal não passo de uma retirante que, se venceu na vida, foi à custa dos seus esforços”. Após a morte dos pais e a aposentadoria, como tinha se casado já há algum tempo com um rapaz também de Curiapeba, muito trabalhador, e com os dois filhos já senhores dos seus narizes, tendo algumas reservas na poupança, após 50 anos de São Paulo, resolveu ir a passeio à terra natal. Ficaram deslumbrados ao rever Curiapeba, que continuava quase a mesma. O mesmo povinho atrasado, futriqueiro de sempre, que se detinha por horas e horas a contar estórias da guerra de Canudos, de Lampião, Padim Ciço; sonhos mirabolantes, pescarias, caçadas de onça, etc. A pracinha vivia cheia de moleques barrigudos, amarelinhos, lombriguentos; sempre disputando peladas, outras vezes de gaiolas nas mãos aconchavando brigas de canários-da-terra, banhos nos rios e outras diversões.

O prefeito Luiz Ignóbil Suíno dos Ovos Sujos, um homenzinho medíocre, um verdadeiro bufão, nada fazia em prol do seu povo, pelo contrário, extorquia a precária verba pública em benefício próprio e de seus apaniguados. Enriquecera de um dia para outro, sendo dono das melhores fazendas da região, perdendo apenas para uns poucos privilegiados, que já nasceram em berço de ouro.

Curiapeba, após o implante do Serviço de Colonização peio Governo Federal, que irrigou a região e a transformou em um pólo agrícola, distribuidor das melhores uvas do Brasil e hortifrutigranjeiros por Salvador, Feira de Santana, Aracaju e outras cidades do sertão, teve um certo destaque econômico, destaque esse que pouco contribuiu para uma maior evolução civilizatória do povo. Mesmo assim, Espinafrinda não vacilou em adquirir uma fazendinha, que estava à venda, nas margens do rio Canjica. Queria contribuir, a seu modo, com o seu quinhão para o desenvolvimento de sua terra e de sua gente. Adquiriu ainda um terreno no povoado de Comercinho, onde construiu uma ótima casa. A princípio, com seu exemplo, tentou mudar os costumes primitivos do povo. Suas roças serviam de modelo, eram as melhores; passou a estimular o povo a melhorar de vida, dentro dos seus próprios recursos. Ensinou a adubação orgânica, aproveitando o bagaço de cana dos engenhos e o farto esterco animal que se perdia pelos currais. Forçou o prefeito Luiz Ignóbil Suíno dos Ovos Sujos a limpar o mato que cobria toda a praça do Comercinho, onde o povo defecava a céu aberto. Induziu-o a consertar as pontes do rio e as cercas do cemitério que serviam de combustão para as fogueiras das festas juninas. Enfim, com seus modos agressivos, porém educacionais, mudou substancialmente a cara do vilarejo. Seu nome chegou mesmo a ser cogitado para disputar uma cadeira na Câmara de Curiapeba nas próximas eleições. Espinafrinda brigava por melhorias para a sua vila e foi dessa forma que conseguiu, junto aos poderes públicos, construir banheiros na pracinha do Comercinho, a fim de que o povo usasse os mesmos e não continuasse a contaminar as águas do rio Canjica com fezes e outros detritos nocivos à saúde. Isto fora o pomo da discordia que fez com que os moradores se revoltassem contra Espinafrinda, não aceitando os banheiros públicos, que eram depredados durante a noite. Preferiam defecar no mato. A mulher, com seu ar de líder, enfrentou os desobedientes, aconselhando-os sobre os malefícios dos detritos que contaminavam as águas, a lavoura, etc. O certo é que o povo se uniu contra ela, movendo uma guerra surda, carregada de ironias, risinhos e chacotas, ditos indiretamente. Espinafrinda era evitada por todos. A mulher sentia, pelas costas, sempre um sorriso de mofa. Todos os engenhos que a princípio lhe deram de graça o bagaço de cana e o esterco dos currais, passaram a negar-lhe, nem mesmo vender aceitavam. Voltaram a incinerá-los, como faziam no pas­sado, antes da chegada de Espinafrinda. A mulher, ao notar a reação do povo contra ela, começou a definhar e a sofrer com a ignorância dos seus conterrâneos a quem só procurou fazer o bem. Ficou tão desmoralizada, a ponto de não conseguir comprador para seus produtos agrícolas, antes disputadíssimos por todos. Agora os comprado­res fugiam dela como o diabo da cruz. Até que um dia, após o jantar, sentou-se no sofá da sala e derreteu-se em copiosas lágrimas. Daí por diante, passou a sofrer intensamente, vivia sempre chorando, perdeu a vontade de viver, não se alimentava e sofria de uma fraqueza brutal. Fizera vários exames com renomados médicos de Salvador, Jacobina, Miguel Calmon e Aracaju, que não descobriam nenhuma anomalia em seu estado de saúde. Mesmo assim Espinafrinda definhava a olhos vistos e, às portas da morte, consultau-se com uma pisicóloga em Salvador, que lhe aconselhou a retornar a São Paulo. Segundo a psicóloga, tratava-se de banzo, sim, banzo. Aquela mesma doença que dizimava os negros dos navios negreiros, no período da colonização do Brasil. A mulher mais que depressa vendeu o que possuía em Curiapeba por menos do que valia e retornou a São Paulo, onde, dentro de poucos meses, sempre acompanhada por bons médicos, recuperou as forças e passou a gozar a vida em toda a sua plenitude, como no passado.

Nenhum comentário: