sábado, 27 de outubro de 2007

O VELHO E O CÃO

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O VELHO E O CÃO

Bithu nascera nos arredores de Curiapeba, filho de pequeno pecuarista e desde os verdes anos ajudara o pai, o velho Nestor de Jesus Malhado, nas lidas diárias. Ora enchiqueirando as cabras, ora pastoreando o gado, ora plantando sisal, feijão, milho, melancia e tantos outros produtos para o sustento da família. Parte dessa lavoura, como o sisal e a cana caiana, era vendida para os usineiros da redondeza e o restante se destinava a feira de Curiapeba, aos sábados. O certo é que Bithu, que vinha dos Jesus Malhado, velha família de há muito radicada na Chapada Diamantina baiana, com alguns mortos na Guerra de Canudos, era um homem queridíssimo no lugar, cumpridor dos seus deveres. Após criar uma família numerosa, resolveu aposentar-se por conta própria, sem nenhuma remuneração por parte do governo. Com todo o tempo a seu favor, morando perto da cidade, ia sempre à praça, ver os amigos, disputar as ruidosas partidas de dados, brigas de galos, de canários-da-terra, corridas de jegues, etc. Dali, foi um passo e logo começou a freqüentar o Cabaçú, lugar de mulheres da vida, que fica ali, atrás do Cemitério e perto do Bar do João Emílio Krauser, na Praça das Boiadas, onde embarafustava-se com políticos e cachaceiros inveterados, como João Cachorro e Felipe Cana Doce. Foi ali que jogou alguns papos fora com o prefeito Antonio Polissílabo Saraiva, que também engolia de vez em quando umas doses de catilóia e era um excelente papo, sem aquela empáfia medonha do seu vice Wasculatório Toneleiros Waluá, catolicão inveterado, metido a besta, que não se misturava com a gentinha do lugar e de quem diziam as más línguas que, depois de ter terminado o namoro com Ovadia de Jesus Jambeiro, passou a se esfregar com garotões, só que em Salvador, para onde se deslocava quase que em todos os fins de semana.

Na época, Maninha de Matos Sampaio já vivia às voltas com seus livros e já deixava antever a figura de proa que iria se tornar, não só como escritora, bem como política. O nome de Maninha mais tarde se tornaria uma legenda, conhecido não somente em Curiapeba e adjacências, como também em Salvador e São Paulo, onde estudara e conhecera o seu futuro marido, Zito Borborema, como também no restante ao Brasil e do mundo. Basta dizer que depois do lançamento de “Sertão: Com Destaque ao Pássaro Sofrê e Outros Bichos Vertebrados e Invertebrados da Chapada Diamantina Baiana”, traduzido para mais de 20 línguas, passou a ser solicitada para lançamentos de suas obras em Roma, Nova Iorque, Tóquio, Madri, Lisboa e tantas outras cidades importantes do mundo. Mesmo assim, Maninha, que aparentemente era um tanto emproada, nunca perdeu o contato com a sua gente e sua terra, de onde arrancava o embasamento para os seus escritos.

Bithu, ao se aposentar e passar a freqüentar esses lugares, começou a degenerar-se, isso para espanto da família, que se via em palpos de aranha com as presepadas que o homem aprontava. Jorginho, filho do meio, perdera a conta de quantas vezes fora buscar o pai bêbado, no seu ronceiro carro de bois, isso após aprontar memoráveis banzés pela cidade. A velha Mercedes, que era cardíaca, de tantos desgostos, num dia de Reis, após a visita dos Magos, começou a sentir-se mal, com falta de ar, pôs a mão direita em cima do peito flácido e, num grunhido tenebroso, entregou a alma a Deus-Nosso-Senhor-Jesus-Cristo, isso após presenciar um ato de grosseria praticado pelo marido, contra Peixotinho, Alferes da Folia de Reis que segundo o velho, espichara os olhos gulosos em cima dos dois peitinhos da sua caçula, Marinice, que se tornava mocinha e era o ai-jesus do velho Bithu, que sempre lhe fazia os gostos e lhe trazia da rua o mais gostosos dos pés-de-moleque ou o mais alvo e suculento docinho de coco baiano, tudo para a sua filha do coração. Bithu, conforme o tempo passava, aprendia novas presepadas na rua, nos puteiros, nas rinhas de galo, no Bar do João Emílio Krauser e não fazia a menor cerimônia em deixar vazar em casa e mesmo na boca do povo todo esse arsenal de safadezas.


Toda a Curiapeba só falava nos desmandos de Bithu, que caíra em desgraça junto à molecada, que lhe azucrinava sempre que o via.

Tinha a família um grande cachorro preto, Navio, muito manso, que não suportava ver o dono bêbado e logo partia contra ele, com ferocidade de lobo. Parece que chegava a adivinhar quando Bithu estava de porre e se punha a uivar, rosnar e ladrar com violência. A princípio, apenas não aceitava os seus agrados como no passado, porém, com o passar do tempo, conforme aumentavam os porres, o cachorro passou a atacá-lo de verdade e, por mais de duas vezes, chegou a morder-lhe o braço quando se movia em sua direção.

Bithu, para agravar a situação, passou a andar com um grande punhal cangaceiro. O subdelegado Bundinha Trombetas sabia de tudo, mas como Bithu era seu contraparente e o julgava inofensivo, nunca o abordara com o pressuposto de tirar-lhe a arma. Mesmo porque outros cabras também andavam armados em plena luz do dia e por toda a Curiapeba. Até mesmo em dia de feira, quando os soldados tentavam pôr um pouco de ordem no lugar.

Num sábado, ao chegar à casa, já tarde da noite, quando todos já estavam dormindo, foi recebido por Navio que, ao sentir o cheiro da catilóia exalado do velho, investiu contra ele com ferocidade nunca vista. A principio, rasgou-lhe as calças, a camisa, os braços, depois passou a investir em direção ao rosto do homem. Bithu, vendo a coisa feia, travou uma luta mortal com o cachorro. Navio apoiou as pernas traseiras no chão e pulou de encontro ao rosto do velho, num visível sinal de quem pretendia esganá-lo através de violentas bocanhadas na carótida. Nisso, Bithu puxou do punhal e esfaqueou a barriga do animal com golpes mortais, levando o cachorro a desistir do seu intento e cair esvaindo-se em sangue. Bithu, por sua vez, também banhado em sangue, tombou exausto, para dar por si no dia seguinte, quando uma nesga de sol esquentava-lhe a cara desfigurada.

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