sexta-feira, 26 de outubro de 2007

MILAGRE EM CURIAPEBA

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MILAGRE EM CURIAPEBA

Aquela semana quente do mês de dezembro, vésperas de Natal em Curiapeba, fora dedicada às orações pelos membros da “Igreja Jesus Virá, Aleluia!...” O templo ali na Praça das Boiadas, em frente a imponente Igreja de Senhora Sant’Ana, pertinho do Bar do João Emílio Krauser (ambiente onde aconteciam quase todos os agitos culturais da cidade), permaneceu aberto todos os dias, desde as seis até as vinte e quatro horas, com seus fiéis fortemente armados com “a palavra de Deus” e seus pastores escovadinhos, bem penteados, com cabelos engomados com creme de ovo e pomada glostora. Vestindo camisas branquíssimas, sorrisos afivelados e palavras fáceis, comandados pelo pastor Genocídio Geronso Garrafino. Orador tremendo, que praticava curas mirabolantes e tinha poder para expulsar castas de demônios.

Para essa semana de orações, afluíra gente das cidades vizinhas e mesmo de Salvador e Aracaju. Os moradores mais velhos diziam que a quantidade de pessoas na cidade lembrava os dias turbulentos da antiga Canudos do Conselheiro, quando este arengava nas suas prédicas “que o sertão iria virar mar e o mar virar sertão”.

Curiapeba ficou uma semana cheia de pessoas graves, sempre vestindo terno e gravata. As mulheres usando vestidos compridíssimos (quase sempre pretos), sem pintura, decote ou outros adereços que as deixassem mais bonitas, mais jovens ou mais sensuais. Cabelos longos, desgrenhados, e ar sempre triste. Esses viventes estranhos enchiam os becos, pensões e mesmo casas de famílias, que cediam locações a fim de colaborar com os irmãos. Tudo dentro da velha e boa hospitalidade sertaneja. (Foi aí que Jô Barranova, empresária paulista, em visitação à Chapada Diamantina baiana, em sociedade com seu amigo Totonhão Toco Preto Sampaio, pensaram em construir o primeiro hotel em Curiapeba.)

Os “crentes” por dá-cá-aquela-palha, abriam a boca no mundo, gritando a todos pulmões, de onde se encontrassem:

– O sangue de Jesus tem poder!...

Outros se cumprimentavam em voz alta, nas praças:

– Paz de Senhor, irmão!...

– Paz de Senhor!...

– Amém. Oh! Glória a Deus!...

Curiapeba, de tradição católica, ficou chocada com o avanço dos gravatinhas, como eram conhecidos pejorativamente.

Os oradores se revezavam durante o dia e boa parte da noite, numa gritaria descomunal, provocando reações as mais diversas na população. Uns contra, outros a favor. O padre Alfredo, percebendo que poderia perder uma avultada parcela do seu rebanho, convocou os padres Cosmorâmico Canindé, Giracino Bembém de Arruda Real (já bem velhinho), Barbalino Medrado Trombetas, Joaquim Torres Barrada e o novato Totó Papa Anjo (alcunha adquirida na adolescência, quando despertou no tinhoso moleque uma forte atração por seus colegas de classe, até que fora descoberto, primeiro pelos professores e depois pelos pais, que o levaram imediatamente para um internato em Salvador, de onde saíra bem mais tarde, arrependidíssimo até à medula e vestindo hábitos religiosos) em conciliábulo tupiniquim inesperado, a fim de tratarem com urgência urgentíssima de um plano para barrar o avanço dos protestantes que, como formiga de correição, se alastravam pela cidade. Nessa reunião ficou acertado que os fiéis seriam convidados para as missas que, a partir daquele dia, seriam realizadas com uma maior freqüência, mesmo fora de dias e horas propicias, a fim de fazer frente às “doutrinas espúrias” apregoadas pelos invasores. O padre Joaquim Torres Barrada, com seu sotaque galego, deixou por algum tempo os seus experimentos na cozinha, onde às vezes, em companhia do poeta João Emílio Krauser, se esmerava no preparo de doceria e bebidas regionais, tais como, licor de jenipapo, guabiraba, sapoti, umbuzada, queijo de coalho, galinha à cabidela, leitoa assada (delícias!...); e tantas outras gostosuras da culinária sertaneja. E abria o peito no mundo, todas as manhãs, no púlpito da Igreja Senhora Sant’Ana, advertindo os fiéis contra os perigos do Anticristo, dos falsos profetas, dos fogos do inferno, etc.

Os protestantes, por serem muitos, mais disciplinados e com maior veemência, dominavam com seus aleluias, seus glórias a Deus, suas línguas estranhas. Isso quando se punham a exorcizar demônios. Os pastores não se esqueciam de cobrar os dízimos e as ofertas em altos brados, começando pedindo quantias astronômicas, para em seguida diminuir a dosagem e terminar com pedidos irrisórios, de forma que atingissem a todos os presentes que, de forma alguma, poderiam escapar da grande rede coletora:

– Meus irmãos, só podemos receber as graças do nosso Deus dando a maior quantidade daquilo que possuímos para a sua obra! Dai e recebei. Dai e sereis abençoados, como diz a santa bíblia. Faziam uma pausa muito bem estudada, liam com voz dramática outros versículos e voltavam a enfatizar que Deus exige, de todos, sacrifícios. Sem sacrifícios não se pode agradar a Deus – sentenciavam enfáticos.

– Amém!... Nós te adoramos, Jesus!...

Outros mais exaltados falavam em línguas estranhas e diziam mais ou menos assim:

– Cucute, cucute, cucute, cucute!...

O que era entremeado de outras vozes que entoavam em coro:

– O sangue de Jesus tem poder!...

– O Senhor é nosso pai!...

Os pobres da “Igreja Jesus Virá, Aleluia!...” cada vez ficavam mais pobres, pois seus poucos haveres eram doados para a causa do Senhor. O padeiro Bernardo Tremembé de Jesus Malhado, ao passar certa manhã, entregando seu pão e leite por Cipoal do Meio, bairro pobre da cidade, ouviu de alguns moradores devotos que, ajoelhados, de olhos fechados, rogavam nas suas preces matutinas que o Senhor lhes enviasse pão para aquele momento, pois ainda não haviam comido nada desde o dia anterior. O padeiro, por sua vez, devoto de Senhora Sant’Ana, ao ouvir as preces se comoveu até às lágrimas, pegou alguns pães do seu balaio, aproximou-se da casa e colocou-os de modo estratégico, a fim de que dessem a impressão que os mesmos haviam caído do céu. Os religiosos, ao presenciarem o milagre, saíram aos berros, espalhando por toda a cidade o ocorrido. Que o Senhor havia ouvido suas preces e como na lenda do maná bíblico derramara uma chuva de pães, a fim de saciar a fome dos seus filhos.

Em pouco tempo a notícia se espalhou pelos quatro cantas da cidade e até hoje ainda corre a história do milagre sem se darem conta que os pães ali aparecidos foram deixados pelo bom padeiro Bernardo Tremembé de Jesus Malhado.

Toca Filosófica, 2l/12/2005

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