sexta-feira, 26 de outubro de 2007

MEMÓRIAS NADA SENTIMENTAIS DE DUNGA...

MEMÓRIAS NADA SENTIMENTAIS DE DUNGA RINDIDUNGA POLISSÍLABO SARAIVA

(Para o poeta Jorge de Barros Gonçalves)

Como sou desconhecido no mundo das letras nacionais, quero afirmar mais uma vez que sou Dunga Rindidunga Polissílabo Saraiva, nascido na Chapada Diamantina baiana. Sou um homem quase centenário, com muito vigor físico e vontade de viver. Lembro-me, como se fosse hoje, de um mar de pequeninas estórias, muitas delas presenciadas por mim nas minhas andanças sertanejas. Dias atrás, escrevi um relato ficcional sobre a passagem da Coluna Prestes pelo sertão baiano, que foi publicado num jornal do Sul, por intermédio do meu amigo Aristides Theodoro, que tem a péssima mania de andar estimulando aqueles que, no se a seu ver, levam jeito para as letras. Pois bem, enviei cópias dessa estória medonha, a pedido do mesmo, para esses brasis afora e não tardou, para minha surpresa, choverem as cartas-elogios vindos dos quatro cantos do País, expedidos por gente da estampa do crítico literário cearense Dimas Macedo, do romancista andreense Antonio Possidonio Sampaio (diga-se de passagem, meu primo), do jornalista Zanoto, de Varginha, Eduardo Waack, de Matão, da resenhista literária Iracema M. Régis, dos poetas Zé Mendonça Teles e Alice Spíndola, ambos de Goiás, do memorialista potiguar Manoel Onofre Júnior, do velho diarista Ascendino Leite, da Paraíba, dos novelistas Nelson Hoffmann, do Rio Grande do Sul e Samuel Duarte, do Espírito Santo, do contista Hildebrando Pafundi, e tantos outros bichos sagrados do mundo das letras, pedindo-me para continuar jogando na alvura do papel novas memórias sertanejas, de preferência aquele xerém miúdo que não foi ainda registrado pelos historiadores coroados da USP, os coleguinhas da socióloga Maninha de Matos Sampaio, que ultimamente anda muito posuda, após o seu noivado com Zito Borborema e o sucesso estrondoso de seu novo livro: "Sertão: Com Destaque ao Pássaro Sofrê e Outros Bichos Vertebrados e Invertebrados da Chapada Diamantina Baiana”. Maninha vive sempre acompanhada de uns tipinhos barbadinhos, temperamentais, de calças frouxas, sem banho e de óculos fundo-de-garrafa, sempre de gravadores em punho, escarafunchando tudo a respeito de flores do sertão, velhas minerações de diamantes e carbonatos, lagos, rios, cânions, locas de pedra e outros quetais, relativos a Canudos e sua guerra fratricida.

Como eu queria dizer, desde o início desta estória, depois da passagem da Coluna Prestes, quando vicejava a saga do cangaceirismo no Nordeste Brasileiro, num sábado, dia de feira em Curiapeba, logo pela manhã, esbarrou na Praça das Boiadas, ali em frente à pensão de Sá Generosa, mãe da Negra Valei-me, ao lado da “Igreja Jesus Virá, Aleluia!...”, e não muito distante do Bar do João Emílio Krauser, um Ford Cara Branca, que descia das funduras do sertão, conduzindo um cangaceiro morto, todo varado de balas, e sua mulher Ada, uma pardavasca valentona, metida a arroz com casca, que havia recebido um tiro na perna, quebrando-lhe a tíbia, que sustinha segura por um tampo de couro. Os dois capturados por um destacamento da Força Volante Baiana, comandada pelo sargento Maçarico. Como já dissemos, viajavam na carroceria do caminhão, toda gradeada de varas de marmeleiro, adaptada em forma de cadeia. Assim que o veículo parou, a negrada encostou-se ao mesmo para ver de perto os fora-da-lei. O prefeito Perfídio Brotoeja Codorniz, cria direta do Dr. Walcírio Toneleiros Waluá, juntamente com o delegado Medrado Clepaúva Adelatrove, acercaram-se do homem a fim de certificarem-se tratar-se de Gavião, ex-homem forte do Bando de Caboré (terror de todo o sertão). O delegado, ao subir ao caminhão, foi logo visto por Ada, sentada no lastro, esvaindo-se em sangue, que muito encolerizada franziu o couro da testa e perguntou a queima roupa:

– O que é que estás olhando, cabra safado, fela-da-puta, tu nunca viste mulé, não?...

Fez um esforço fora do comum, suspendeu a parte superior do corpo, escarrou e cuspiu na cara balofa do delegado, que pulou no chão, limpando uma meleca fétida.

Os presentes, por não simpatizarem-se com a autoridade, riram-se à bandeira despregada, alguns chegaram mesmo a assoviar com estridência, num vivo gesto de apreço ao ato da prisioneira. Afinal, o homem da lei, por não ter coragem para enfrentar os cangaceiros, se vingava de pobres sertanejos bêbados, em dia de feira.

Após o caminhão abastecer-se de água e o motorista com os soldados fartarem-se na pensão de Sá Generosa, seguiram em frente, levantando um vendaval de poeira vermelha no ar e levando os cangaceiros para o desconhecido, quem sabe, para Jacobina ou Salvador. Como é que vou saber?

Toca Filosófica, 16/02/2005

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