sexta-feira, 26 de outubro de 2007

DUNGA RINDIDUNGA POLISSÍLABO SARAIVA REMEMORA A PASSAGEM DA COLUNA PRESTES

DUNGA RINDIDUNGA POLISSÍLABO SARAIVA
REMEMORA A PASSAGEM DA COLUNA PRESTES
PELA CHAPADA DIAMANTINA BAIANA

A bem da verdade, sou Dunga Rindidunga Polissílabo Saraiva, de velha família dos sertões baianos, com fortes raízes fincadas entre Milagre, Utinga, Paraguaçu e Curiapeba, para onde nos mudamos em 1897, logo após as balas dos canhões do General Artur Oscar terem destruído o povoado de Canudos. Era eu na época um meninote, quando meu pai, o velho Pracídio Polissílabo Saraiva, adquiriu a fazenda Moquifo, às margens do Rio da Onça e da Estrada Real, no município de Curiapeba. Aí, iniciamos o plantio de sisal, vivíamos relativamente bem, com algumas vaquinhas de leite, mulas, cavalos e jumentos para as tarefas diárias. Posso dizer que conheço bem estes sertões, desde as lendas mais cabeludas sobre Antonio Conselheiro e seus beatos, as façanhas envolvendo a soldadesca do governo que se dispersou por estas brenhas, muitos deles morrendo de fome e de sede no meio destes carrascais medonhos. Mais tarde, quando o sertão nem bem havia se curado das chagas de Canudos, apareceu a Coluna Prestes, que levou o Coronel Horácio de Matos (que viria a ser avô da escritora, socióloga e pesquisadora Maninha de Matos Sampaio), a se levantar, a fim de defender a Chapada Diamantina baiana da tirania de um tal de Capitão Luís Carlos Prestes, proveniente do Rio Grande do Sul, um soldadinho enfezado, metido a arroz com casca, ávido de poderes, que se rebelou contra o governo de Artur Bernardes e, com outros malucos sedentos de aventuras, lançou-se numa marcha inconseqüente, brasis afora, incendiando, destruindo as aguadas, pilhando, roubando, matando, deflorando e deixando os lugares por onde passava em estado de terras arrasadas.

Quem mais sofria na rota desses malucos eram justamente os mais pobres, aqueles a quem o Sr. Luís Carlos Prestes dizia querer ajudar.

Foi em julho de 1926, quando a Coluna Prestes percorria a Chapada Diamantina, que o prefeito de Curiapeba, Trombagildo Abnegardo da Silveira, um homem bom, unicamente por fazer declarações favoráveis ao Coronel Horácio de Matos e sua gente, foi assassinado covardemente em uma emboscada. Dizem as más línguas que pelos seus inimigos, comandados pelo dentista Athanázio Valovelho Chepaúva, derrotado nas eleições passadas e no momento defendendo os ideais da Sr. Luís Carlos Prestes. Os homens deste acampavam nas fazendas da região e dizimavam todo o gado, cabras, porcos, deixando alguns fazendeiros sem uma só cabeça de criação e com um punhado de vales ou bônus de guerra, e onde os rebelados se comprometiam a saldar as dívidas após tomarem o poder à força. O pior é que abusavam das nossas filhas e mulheres. Uma vez, apareceu em nossa casa Prestes em pessoa, vinha na frente do grupo, bem me lembro, baixinho, barbado, de cara agasturada, usando chapéu de massa e lenço vermelho atado ao pescoço. Ao chegar, foi logo perguntando a meu pai:

– É você o Pracídio Polissílabo Saraiva? (Se vê cada uma!. . Isto é nome de gente?)

– Sou. Sinsinhô! – disse meu pai.

– Onde estão seus cavalos? – indagou Prestes, com ar de poucos amigos.

– Eu não tenho cavalos – disse meu pai.

– Olha que tem – resmungou Prestes. Você tem um cavalo preto e um vermelho. Já estou informado disso. Não se faça de rogado, homem. Preciso dos cavalos.

Meu pai encarou o homem e tornou a dizer:

– Meu sinhô, eu não tenho cavalo nenhum.

Prestes, que tinha uma taca na mão, não vacilou e deu duas lambadas na cara do meu pai, que caiu se esvaindo em sangue. Em seguida, sem se condoer com a dor do velho, ordenou-lhe que se levantasse. Deu-lhe mais uma bordoada, e arrematou:

– Vamos!... Onde estão os cavalos? Olha que a coisa poderá ficar preta pro seu lado.

Meu pai pediu que os acompanhassem a um capão de mato, onde os cavalos estavam escondidos. Prestes, ao ver os animais, encarou o vermelho brilhante, luzidio, bem tratado, e perguntou:

– Esse cavalo é manso, meu velho?...

– É sim. É manso – disse meu pai.

O baixinho ordenou que transferissem a cela para o vermelho e, em seguida, amarrou uma corda de sedenhos no pescoço do meu pai e a ponta da mesma à garupa da sela de um cabra mal-encarado e saíram trotando estrada afora, arrastando meu pai, como um cão danado, até a fazenda Sucurucu, onde o deixaram e seguiram em disparada rumo a Utinga e, no dia seguinte, assassinaram a sangue frio o coronel Papelote Canaverde Gonzaga, que não negava seu incondicional apoio ao Coronel Horácio de Matos. Meu pai, desse dia em diante, nunca mais foi o mesmo e, numa tarde, na feira de Curiapeba, ao presenciar um furdunço, atribuído aos cabras de Lampião, enquanto almoçava na barraca da Negra Vaiei-me, sofreu um ataque fulminante, entregando ali mesmo a alma ao Criador.

Conto essas tristes bramuras apenas para dar outra versão a essa aura de honestidade e heroísmo atribuídas à Coluna Prestes. Que, para quase todos os escritos consultados por mim sobre o assunto, com exceção feita ao imparcial jornalista Antão Calasans, do jornal A Voz do Sertão, autor de livro homônimo, Prestes foi sempre pintado como um santo, um salvador da Pátria, “O Cavaleiro da Esperança”. Entretanto, quem viveu de perto o drama sabe muito bem que não foi assim. Portanto, peço desculpas pelas minhas mofinas letras. Sei que não tenho jeito para a escrita. Sou apenas um bronco tabaréu do sertão e não entendo nada de sintaxe, vírgula, ponto e vírgula e tantos outros macetes de que só os literatos de verdade são capazes, a fim de produzir uma boa estória.

Toca Filosófica, 25/01/2005

Nenhum comentário: