sábado, 27 de outubro de 2007

MACHÃO CURIAPEBANO DOBRADO PELA FORÇA DA PSICANÁLISE

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MACHÃO CURIAPEBANO DOBRADO PELA FORÇA DA PSICANÁLISE



"Amansa o corcel inflamado”

William Blake



Nasci em Curiapeba e minha mãe sempre dizia que ficou muito
contente, quando ouviu o meu primeiro choro e Salumbilina, velha
parteira da região, com seu sorriso de gengivas encarnadas olhar para
ela e dizer


- É minino home, de saco roxo, má fia!..


Cresci num ambiente rude, ouvindo berros de vacas, relinchos
de éguas no cio, latidos de cães danados, brigas de galos e
canários-da-terra e o meu pai dizer, com insistência:


- Homem que é homem não chora!..


De inicio, nunca chorei. Aprendi no dia-a-dia que naquelas
brenhas medonhas era preciso de muita macheza, para empurrar a vida.
Quantas vezes, não tive de enfrentar vacas brabas a pontapés, a fim de
curar o umbigo dos seus filhotes. Amansar burros chucros a unha. Outras
vezes, de jacaré na cintura e lazarina em punho, cheinhazinha de balas,
deparar-me frente a frente com canguçu faminta, a mirar um no olho do
outro e a bicha piscar primeiro, lamber os bigodes, miar fininho, que
nem gato e se esgueirar, temendo a dureza do meu olhar e as balas da
minha lazarina. Nunca fui de temer valentões de feira, os quais botava
pra correr, no grito, com a força dos meus pulmões. Até que um dia,
cansei-me daquela vidinha besta do interior, botei alguns cobres na
algibeira, abotoei a fivela do matulão, tomei um trem de ferro em
Itiúba e fui dar um pulo no São Paulo, onde, ao chegar, insinuado por
um primo, matriculei-me num curso, do qual ele falava muito bem. Se me
perguntarem o nome do tal curso, não saberei dizer. Só sei que a
professorinha era uma figura simpática, muito culta, um desses tipos de
mulé macho, que convence o vivente com a força da sua argumentação e
que colocava fora das suas aulas, sempre no grito, penetras enxeridos e
metidos a engraçadinhos, que apenas queriam tumultuar. Fiz bons amigos
por ali. Especialmente entre as mulheres. Nunca fui de gostar de
homens. Até mesmo quando os cumprimentava, não gostava de estender-lhes
a mão. Isso por não saber onde o infeliz andou colocando a mesma. Até
que um dia, a mestra, que convém dizer, chama-se Munique, acho que seus
pais se inspirarem na velha cidade alemã, quando a batizaram; imbuída
de teorias literárias, passou a citar uns tais de Herman Hesse,
Nietzche, Cervantes e Tolstói (vejam vocês, nenhum brasileiro) e
fez-nos embriagar de Jung e de um francesinho metido a arroz com casca
e muita coceira no fiofó.Um tal de Bachelard, que criara umas teorias
malucas que trata do “ânimo" e da "ânima", o que quer dizer, macho e
fêmea na mesma pessoa. A princípio, choquei-me com os argumentos
apregoados por Munique e pensava comigo mesmo: "Se vê cada uma neste
São Paulo!... Comigo não, violão!... Eu sou é homem com H. Nasci homem
e morrerei homem. Nada de frescuras pra cima de mim. Não. Mas, de tanto
insistir a professora e as colegas, tentando mostar-me o meu lado
feminino, ou melhor, de "ânima”, uma noite, após ouvir a leitura de um
texto afrescalhado do tal de Bachelard, sobre o assunto, que diz assim:
“Um único corpo dominado por duas cabeças coroadas. Belo símbolo da
dupla exaltação da androginia. A androginia não se oculta numa
animalidade indistinta, nas orígens obscuras da vida. Ela é uma
dialética do apogeu. Mostra, vindo de um mesmo ser, a exaltação do
animus e da anima. Prepara os devaneios associados do supermasculino e
do superfeminino.”


As minhas colegas Nélia Maria Fernandes, Águida Sarmiento e a
Nega Fulô, no barzinho do China Pau, na hora do intervalo, argumentaram
e tentaram mostrar-me que a mestra estava certa e que todos nós temos
porções imensas do "ânimo" e da "ânima" escondidos no mais recôndito
dos nossos seres. Voltei pra casa abestalhado, com aquilo no quengo. E
perguntei de mim para comigo: “Mas como, logo eu, Osmundino Carriega
Soromenho de Jesus Malhado, que sempre fui homem com H, chegar na
cidade grande e receber de cara urna dose dupla de baitolagem?... Não e
não. Continuarei a ser homem com H maiúsculo, sem me deixar levar por
essa conversa mole desses cabras frescos da capital."


No dia seguinte, Osmundino Carriega Soromenho de Jesus
Malhado, que nunca fora dado às leituras, entrou numa livraria, talvez
pela primeira vez e saiu dela sobraçando alguns livros de Jung e "A
Poética do Devaneio", do Bachelard, tão enaltecida por Munique. Foi pra
casa e mergulhou na leitura das teorias psicanalistas e chegou a se
convencer com a força dos argumentos e passou a se auto-analisar e a
concordar que realmente possuía as duas partes iguais do "ânimo" e da
"ânima" dentro de si. Ligou para Nélia Maria Fernandes, falaram por
quase uma hora sobre o assunto e, desse dia em diante, teve de mudar o
seu comportamento, como também o seu guarda-roupas. Comprou calças
coloridas, vermelhas, verdes, lilases, rosas; sapatos brancos,
vermelhos, cinzas e um dia, após tomar banho e se olhar demoradamente,
nu, nuelo, no espelho, notou que os peitos, antigamente atrofiados,
cheios de pelos duros em volta dos bicos negros, começavam a se
desenvolver. Foi aí que teve vontade de ser penetrado, como as
mulheres. Pensou consigo mesmo: "Que meu pai, lá do céu ou do inferno,
onde estiver, não tenha notícias destes meus pensamentos. Caso
contrário, corro sérios riscos de ser jogado da cama no chão, durante o
sono, pelo espírito revoltado do velho, que, por certo, argumentaria
que não colocou filho no mundo para andar por aí, vestindo calças
coloridas, coladinhas ao corpo e a se sacodir, feito baitola,
macho-franga, viado. Como se diz no sertão.


O certo é que o machão curiapebano, que sempre foi, e não
perdia um segundo sem pensar em mulheres, de preferência na horizontal,
arrefeceu o seu apetite e passou a sonhar com uma relação onde pudesse
fazer o papel de fêmea. Era assim a "ânima" se manifestando dentro do
homem rude dos sertões. Voltou a pensar no pai e rogou insistentemente
a Deus-Nosso-Senhor-Jesus-Cristo, que não permitisse que o espírito do
progenitor, Macedônio Carriega Soromenho de Jesus Malhado, lá de onde
estivesse ficasse sabendo das suas vontades. Senão seria capaz de
revirar céus e infernos afim de dar-lhe umas bordoadas corretivas e pôr
o seu fedelho nos trilhos, antes que fosse tarde demais. Pois, segundo
as leis do sertão, homem que nasce homem morre homem.




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